quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

A estranha origem do frevo por Benjamin Lima


A estranha origem do frevo
Benjamin Lima
Como todas as coisas humanas, têm as danças o seu destino. Era, por exemplo, o do frevo, que ele gastasse alguns anos para conquistar o Rio de Janeiro. Mas, enfim, acaba de conquistá-lo e, ao que parece, de maneira completa e definitiva, consoante, aliás, se devia prever dado o extraordinário valor coreográfico dessa criação da patuléia do Recife.
Para se apreender com rigor aproximado a lentidão de tal vitória, é preciso ter-se presente a lembrança de que, há mais de um lustro pelo menos, estudantes pernambucanos, partidos em excursão artística, já realizaram aqui, demonstrações de bailados típicos de sua terra.
O êxito que obtiveram, foi chamado um tanto paradoxalmente de "de estima", e circunscreveu-se, além disso às rodas de profissionais e diletantes, onde reina constante preocupação com esses assuntos.
Nada se observou então, que envolvesse um prenúncio, vago sequer, da valorização do frevo no meio da gente carioca. E haver assim acontecido é motivo de estranheza, porque dois fatores prometiam, juntos, o contrário: a enorme fascinação dessa dança e a formidável animação dessa gente.
Dir-se-ia que o samba e a marchinha, um embalador e a outra agitante, satisfaziam por inteiro aos moradores desta capital, inibindo-os até de perceber os encantos novos de artigos congêneres de importação.
Aceita, porém, a nossa hipótese, deve-se acreditar que o inevitável se deu por fim: gastaram-se aquelas músicas porque demasiadamente ouvidas e cederam o caminho a tudo quanto pudesse conter uma esperança de novidade.
O frevo, que aguardara pacientemente a sua hora, confiante na dupla sedução dos seus compassos e dos seus "passos", investiu a praça, e ai esta dominando-a, como e natural, tanto pela singularidade das melodias quanto pela excentricidade das marchas.
A fim de fugir a todo exagero, limitemos-nos a dizer que é um irmão condigno do samba e do maxixe, podendo figurar, junto aos dois, no ápice da coreografia brasileira de invenção plebéia.
Talvez, entretanto, porque menos conhecido, menos estudado, possui o frevo características das quais pode provir, para ele, uma situação de certo privilégio no quadro de inventos de nossa raça em matéria de dança
Caprichosas, extravagantes, exdrúxulas são as figuras já fixadas e sistematizadas de que ele se compõe. O frevo é verdadeiramente acrobático; e as acrobacias a que obriga, muitas delas dificílimas a ponto de procurarem ação em truques proverbiais dos equilibristas, como o emprego de guarda-chuva ou de sombrinha, distinguem-se todas por muito de coreograficamente imprevisto, até mesmo de anatomicamente monstruoso. Compele ao fingimento de anomalias horríveis e de aleijões inéditos. Não pode existir, em todo universo, dança que mais desarticule e deforme. Assemelham-se-lhe, mas apenas de longe, o swing e a rumba, no poder caricaturante. Chega nele ao cúmulo o dom de afetar quem o dança. É um bailado essencialmente grotesco. E, nada obstante, representa um dos espetáculos mais empolgantes para quem saiba estimar devidamente essa forma de arte.
Pois, sem embargo da multiplicidade e da variedade das suas figuras, marcas e passos, o frevo deixa --- e esse deve ser um dos segredos do seu fascínio -- uma bem dilatada margem para o desenvolvimento da capacidade de invenção que haja nos dançadores, porventura. Cabem nele todas as fantasias e extravagâncias. É, por excelência, uma dança de improvisação. Quem praticando-a pretender glórias incontestáveis, precisa revelar-se forte na prática penosa do repentismo. Tem-se, pois, o direito de enaltecê-lo como sendo, na esfera da coreografia, uma escola de individualismo e de gênio...
Com esse conjunto de predicados estranhos, como poderia o frevo deixar de ter uma estranha origem? Parece que não há duas opiniões a respeito. Ele nasceu, em forma embrionária, é bem de ver, quando o molecório da capital pernambucana se habituou a formar na frente das bandas de música, fazendo "visagens" -- como hoje se diz -- gingando e dançando ao som das marchas e dobrados. Eram vagabundos na maior parte, e desordeiros, malfeitores mesmo, em grande percentagem. Equivaliam, pois, com todo o rigor, aos capoeiras cariocas dessa mesma época. E, assim, aproveitavam-se da oportunidade, que era de ajuntamento e confusão nas ruas, onde todos os transeuntes queriam ver a passagem das orquestras marciais e volantes, para fazerem toda a sorte de diabrura, inclusive espetar facas no ventre de pacatos burgueses.
Através dos tempos, e sob a ação excitante do carnaval, o tipo rudimentaríssimo de bailado que daí proviera, evoluiu, complicou-se, converteu-se, finalmente, numa das principais produções da arte brasileira mais autêntica, rica de seiva e estuante de originalidade -- tão original mesmo, que logra ser uma expressão, do belo, mediante o cultivo proposital, sistemático, intenso, do feio...
 
(Lima, Benjamin. "A estranha origem do frevo". Jornal do Commercio. Recife, 4 de março de 1962, suplemento, p.14)

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