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Tem gato no palanque
Para Hélio K.
No avião, comecei a devorar o livro “O gato sou eu”, que havia comprado no aeroporto da Pampulha por 12 mil cruzeiros. Nas turbulências das nuvens, ria das crônicas do Sabino e imaginava que aquele dia não seria como os outros.
Saí de Belo Horizonte com destino a São Paulo, na manhã daquela segunda-feira, para iniciar mais uma semana de trabalho no BB, que incluía duas viagens diárias entre as duas capitais. Eu levava os cheques de Minas para a Câmara de Compensação Nacional, no centro da Paulicéia. Uma rotina que me levou, por dois anos, a viver simultaneamente nos dois estados.
Ou a sobreviver imune a um dia como aquele.
Era 16 de abril de 1984. O Brasil vivia uma agonizante ditadura. A inflação e a confusão cambial faziam com que um cafezinho em Congonhas custasse mais caro do que um cacho de bananas. Mas, enquanto Figueiredo domava bestas e cavalos na Granja do Torto, lá na Corte, aqui em baixo o povo começava a botar fogo no circo.
Logo que cheguei em Sampa, vi que a cidade já começava a se encher de gente, que vinha de metrô e dos coletivos, para participar do comício das Diretas Já.
Subi o Largo Paissandu, onde comi um bauru, e aproveitei para ligar de um orelhão para Sálvia, minha amiga paulistana, para marcar o nosso encontro. Atrasado, saí correndo pela avenida Ipiranga até chegar no meu matadouro: um quitinete no 25º andar no edifício Copan.
Na Praça da República, parei e comprei de um camelô uma camiseta amarela escrito em azul “Eu quero votar pra presidente”. Ele me disse que era a última e já havia vendido todas as peças. Ele também contou que era pichador e me mostrou um muro com sua arte, onde se lia “Pelas liberdades democráticas”. Era o povo se rebelando.
O brasileiro não queria saber dos discursos ufanistas do general Figueiredo, nem tinha medo da espada do general Newton Cruz, que bradava que o comício em São Paulo seria um retumbante fracasso e que poderia ter bomba. Enganaram-se. O povo estava todo amarelo nas ruas, cantando e dançando a música “Apesar de Você”, de Chico Buarque, driblando as minas de mentira plantadas, caminhando de mãos dadas. Nunca vi nada igual àquele dia.
Banho tomado e figurino trocado, virei personagem. Desci como um gato a avenida São João. Estava com a bandeira do Brasil nas costas e um chapéu de palha verde no meu cabelo black-power com um enorme crisântemo amarelo, o símbolo do movimento. Estava disfarçado de gato de rua.
Marquei o encontro com Sálvia na parte de trás do palanque. Ela viria com a máquina fotográfica pra registrar a nossa participação no comício. Só que eu não imaginava que seria impossível chegar até lá. Com a multidão exaltada, muitas brigas aconteciam, e a polícia deixava o pau rolar. Mas eu estava determinado a cumprir o meu objetivo secreto, mesmo se não a encontrasse.
Para chegar perto do palanque, teria que atravessar um mar de gente. Soube depois que ali havia um milhão e meio de pessoas ocupando todos os espaços do Vale do Anhangabaú. Nunca vi tanta gente querendo a mesma coisa, e quase todas vestindo a mesma camisa amarela. Mas eu entrei ali como um gato desbravador e fui abrindo veredas na multidão até chegar bem perto do palanque, obcecado pela possibilidade de beijar Fafá de Belém. Um sonho safado de gato.
Cheguei a ver quando ela falava com o então sindicalista Lula – que havia disputado o governo paulista em 1982 – e o jogador Sócrates, criador da “democracia corinthiana”. Todos estavam tensos com o boato das bombas. Terrorismo oficial.
Mas o gato estava ali, tentando furar a corda de isolamento. No primeiro descuido, avancei, mas, putzgrila, acabei sendo agarrado pelos seguranças. Foi aí que virei ator: deitei na bandeira e chorei no asfalto. E o destino mudou o rumo da história.
O narrador esportivo Osmar Santos – que iria abrir o comício e gritar o dístico “Diretas Jáá!” - vendo aquela cena, me chamou lá de cima:
- O que está acontecendo aí, rapaz?
- Socorro! – Gritei - Eles não respeitaram a liberdade de imprensa nesse país e me impedem a cobertura, disse mostrando minha vencida carteira de estagiário de jornalismo da sucursal do JB em BH.
- Deixa ele subir! – Gritou Osmar para os seguranças – Aqui a imprensa é livre!
E fui, com o crisântemo pulando de alegria na cabeça. Nunca poderia imaginar estar ali, ao lado de Ulisses, Tancredo, Itamar, Fernando Henrique, Lula e Brizola no maior comício de todos os tempos no Brasil.
Era a hora de colocar em funcionamento o meu plano secreto. Saí em busca de Fafá de Belém. Ela estava falando com Plínio Marcos e com Gonzaguinha, meu velho companheiro dos voos da Vasp. Com a ajuda do “Magro”, cheguei perto dela.
Foi então que Osmar chamou Fafá para cantar o Hino Nacional e eu ali, atrás dela. Naquelas alturas, suor e choro se misturavam, e minha maquilagem de gato já havia se tornado um borrão abstrato.
Quando Fafá acabou de cantar, eu avancei até a frente do palanque, tirei as pétalas do meu crisântemo e joguei sobre ela, que emocionada me abraçou ali, na frente daquela multidão, que aplaudia e gritava o seu nome. E eu, um ilustre desconhecido, estava com ela. Era totalmente demais.
–Se não vier a alegria, a gente não consegue a democracia, disse Fafá, para o delírio da multidão.
No dia seguinte, de volta a BH, abri o jornal no avião e dei de cara com uma foto onde eu apareço – um braço, confesso - ao lado de Fafá, no maior palanque democrático, onde o gato estava ao lado de quase todos os próximos presidentes da república.
Mas Sálvia nunca acreditou nessa história.
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