sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

Gol de placa

 Meu carro é um golzinho preto, Trend 2011, comprado do primeiro dono em 2012. Ele se parece comigo (dizem que os cachorros se parecem com os donos, mas alguns carros também). Tem um som de boa qualidade mas de pequeno alcance, a lataria está bem conservada, mas tem muitas marcas do tempo, os pneus têm durado muito, estão meio gastos mas podem ser recauchutados,  se necessário, ouço alguns barulhos na suspensão que nunca conseguiram descobrir o que é, por dentro está mais conservado do que por fora, a potência é média na arrancada, mas se deixar pegar o embalo vai longe.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

O PROFESSOR

                                    O professor

        (um conto de Marcos Bassul aseado em fatos reais)


A última vez que se meteu no meio de uma multidão não deixou boas lembranças. Foi no estádio do Mineirão, na final do campeonato. Chegou 10 minutos atrasado, o jogo já tinha começbado. Tinha um ingresso para a Geral (era do tempo da Geral, um anel gradeado em torno do campo onde o público assistia jogos em pé, pagando ingresso mais barato). Acima da geral havia arqubancadas e cadeiras, para quem podia pagar um pouco mais (Gonzaguinha imortralizou com muita graça e maestria em "Geraldinos e Arquibaldos").

Depois de muita esfregação e bundalelês conseguiu um lugar para se acomodar e respirou fundo. Uma vez, duas vezes, três vezes, na quarta, ao dar o impulso inicial para puxar o ar, sentiu algo macio cair meio fofo na sua cabeça e se esvaziar, soltando um líquido quente que escorreu pelo seu rosto no momento em que dava início à inspiração. Antes de acabar o movimento para depois soltar o ar, em um curtíssimo espaço de tempo, pentelhésemos de segundo, identificou que aquele líquido quente que se espalhava de cima para baixo, passava na lateral do nariz, repousava no canto da boca para depois se esvair pela barba, era mesmo o que seu olfato lhe informava: o velho, cotidiano e necessário xixi.

Nem chegou a completar o movimento de inspiração profunda que vinha fazendo. Travou no meio do caminho e a tentativa de expulsar o ar rapidamente para se livrar do cheiro provocou no estômago um movimento que mais parecia uma espiral se dirigindo à sua garganta, e o inevitável se deu. Já todo aquecido pelo xixi, ao começar a soltar o ar, soltou também os três pães de queijo e o café com leite que tinha degustado antes de sair, e quem sabe lá mais o quê. Em um tempo equivalente a três respirações profundas e meia estava todo mijado e vomitado. Esse era um dos problemas que os "Geraldinos" enfrentavam constantemente. Sacos plástico de xixi estourando em suas cabeças.

Molhado, quente, fedendo, indignado, irado, xingou até a origem africana ancestral do "filho da puta" ("filho", e não "filha". Tinha a rápida certeza de que fora um homem e não acho que tenha sido machismo da parte dele. Não consigo imaginar uma mulher fazendo isso). Vivenciou uma catarse profunda enquanto vociferava uma série de palavrões (ouvi dizer que alguns palavrões fazem bem e outros fazem mal para quem fala). Consumiu umas 5 respirações profundas nesse processo, muito mais rápidas e mais vigorosas do que as três primeiras de quando chegou, e nem percebeu que estava cheirando vômito e xixi profundamente e à toa, pois o meliante não o escutava e provavelmente nem fazia ideia de onde seu líquido corporal salgado havia se espalhado.

Depois desse turbilhão, olhou repentinamente para o placar, que marcava 13 minutos de jogo. Em menos de 3 minutos ele havia se transformado de um pacato e animado "Geraldino" em um triste, envergonhado e irado cidadão de bem, no lugar errado e na hora errada. Se tivesse chegado 10 minutos depois ou mesmo se tivesse se acomodado alguns metros para um lado ou para o outro não teria sido alvo. Só um pouco mais calmo tomou a única decisão sensata que poderia tomar naquele momento: sair fora, ir para casa tomar um banho e escutar o final do jogo pelo rádio.

Deixar a Geral, apesar de naqueles três minutos o número de "Geraldinos", que já lotava o estádio, ter aumentado consideravelmente, foi muito mais fácil do que entrar. Ao ver em sua direção aquela figura cabisbaixa, vomitada e mijada, correndo como um touro em direção ao toureiro, todos se afastavam. Um corredor ia se abrindo em direção à saída, como nos velhos desfiles de frevo do início do século passado em Pernambuco, com seus capoeiristas à frente para abrir espaço e o bloco poder passar.

Vazou. Mas não antes de trupicar num pequeno degrau mal colocado fora do estádio e catar uns cavacos. No segundo cavaco, percebeu com sua visão periférica que havia um poste à sua direita, um pouco mais à frente, um poste de ferro, fino, esperando para ser agarrado por ele. Na certeza de que ia conseguir alcançar o poste, no terceiro cavaco ajudou com um impulso para chegar ao apoio salvador, mas não conseguiu, e aí foram mais dois cavacos desequilibrados até cair de cara no chão. Usava óculos fundo de garrafa, a barba preta era grande, andava de chinelo de sola de pneu com tiras de couro e vestia batas brancas com calça jeans, dava aulas de história e tinha a personalidade solidária, militante da esquerda, cheio de objetivos comunitários. Nada disso fazia a menor diferença naquele momento. Estava no chão, com uma das lentes do óculos quebrada, um buraco na calça jeans que salvou seu joelho, um arranhão na testa e um dedão direito faltando um pedaço da ponta, que certamente ficou no degrau.

Ao se levantar sentiu outra onda de raiva se expandir e antes de explodir mais uma vez se lembrou do ensinamento de um mestre chinês que ele tinha lido em uma antiga revista Planeta. Dizia o mestre que o nosso corpo absorve os reflexos de nossas emoções. Que a raiva, a ira e o medo causam enormes distúrbios no organismo e que ao nos deixar tomar por essas emoções estamos abrindo mão do controle consciente da nossa vida. Dizia o mestre que ao percebemos tal sentimento brotar devemos acomodar nosso corpo relaxadamente, fechar os olhos e respirar profundamente várias vezes até recobrar o controle. E assim ele o fez. Sentou-se no degrau, fechou os olhos e começou a respirar profundamente. Na terceira respiração já estava mareado de novo pelo cheiro de vômito, xixi e suor. Mandou o mestre se foder, levantou-se e saiu xingando todos os palavrões que havia aprendido em sua vida.

Chegou ao ponto de ônibus, que para sua sorte tinha poucas pessoas (acho que no fundo nesse momento ele não estava nem aí para isso) e escorou-se em um dos pilares. Experimentou os óculos com uma lente só nos ônibus que passavam para ver se conseguia enxergar direito. Não queria perder o ônibus pois a linha em que ele viajava só passava a cada 90 minutos. E só tinha essa para o rumo onde morava.

Até que não demorou muito para avistar o ônibus. Estava um pouco cheio, mas ele teria que enfrentar os olhares reprovadores dos passageiros. Me lembro uma vez de estar em um ônibus em Brasília, na W3 Sul (Brasília tem endereços que só quem mora lá entende) e no meio do caminho entrar um mendigo e se deitar no armário do motor, que ficava no fundo no veículo. Deitou e tirou os sapatos. O cheiro foi tão forte e infernal que os passageiros foram se espremendo para frente do ônibus tentando fugir do fedor. Mas não adiantou nada, o motorista teve que parar o ônibus e pedir ao cidadão que calçasse seu sapatos ou descesse do ônibus. Ele até calçou, mas não resolveu muito. Enfim, naquele momento o professor só queria sentar-se no ônibus, baixar a cabeça e torcer para chegar rapidamente em casa.

Mas como a lei de Murphy não escolhe hora nem local, ao começar a se dirigir à porta do ônibus colocou a mão no bolso de trás para tirar a carteira e notou que o bolso estava vazio, zerado. Roubaram sua carteira na Geral. Nesse momento, além de vomitado, mijado, suado, ferido, cansado, irado, puto, a calça rasgada e enxergando por um olho só, também estava sem dinheiro. Com certeza, no estado em que estava, se contasse a sua história para alguém poderia até conseguir a grana do ônibus, mas não, ele não faria isso. Já tinha passado vergonha demais. Precisava expulsar a raiva que estava dentro de si e que a respiração do mestre não conseguiu botar para fora. Muitas vezes, submetidos a situações de raiva, insegurança e principalmente medo conseguimos superar até mesmo dificuldades físicas e realizamos ações que em "situações normais de temperatura e pressão" não conseguimos. Uma vez, quando ainda criança, ao me ver perseguido por um bulldog de um amigo que se soltou da mão, corri como nunca havia corrido e pulei uma grade a qual nunca tinha conseguido pular. Logicamente ao chegar do outro lado fiquei rindo e curtindo com a cara do cachorro.

Resolveu que iria embora a pé. Melhor, iria embora correndo, apesar de não ter físico de atleta, não ser atleta e não praticar nenhum esporte. Correr para expulsar a raiva, já que não era ético esbofetear alguém, principalmente alguém sem culpa no cartório. Tirou a bata e procurou alguns pedaços secos para enxugar a cara do suor, da urina e do sangue, enrolou no sentido maior como uma corda e esticou em volta da cintura prendendo as pontas de cada lado e foi. Venceu correndo com muito sacrifício, com pausas recuperadoras para respirar (já nem sentia mais o cheiro que dele exalava, na verdade já tinha se acostumado) os 3 Km que o separavam de sua casa, enquanto marcava o ritmo com xingamentos ao "Arquibaldo" "miserável mijão filho da puta" que neste momento estava lá sentado assistindo o jogo sem ter a menor ideia do que se passava com ele.

Finalmente chegara. Do ponto de ônibus até o prédio onde morava caminharia mais 200 m e o tão esperado banho talvez lavasse sua alma junto com o corpo. O Condomínio onde morava tinha um sistema de senha para abrir as duas portarias. Quando saía precisava apenas levar a chave da porta do apartamento, que ele prendia a um cordão e pendurava no pescoço por dentro da roupa. Era somente uma chave, pequena, não pesava, não fazia barulho e não corria o risco de perdê-la. Pelo menos era o que ele pensava.

Ao tirar a bata para se limpar e sair correndo estava tão desnorteado que não se lembrou da chave pendurada no pescoço e que juntamente com a bata foi sacada, e como era leve e não fazia barulho sua perda não foi notada. Estava tão fora de si que correu os 3 km sem camisa e não percebeu que a chave não estava mais ali pendurada. Voltar ao estádio para procurar, nem pensar. Entrou no prédio e dirigiu-se ao andar onde morava pelo elevador, nem se importando mais com o cheiro que exalava. Não tinha muitas relações com a vizinhança, mas não teve outra saída se não bater na porta do vizinho que ao abrir deu de cara com aquela figura estapafúrdia e por reflexo a fechou imediatamente, sem reconhece-lo (já naquela época a segurança não era lá essas coisas e as pessoas já tinham medo de tudo e de todos). Foi preciso bater de novo e explicar de fora que era o vizinho e que precisava de uma ajuda, blá blá bla...Vergonha, vergonha, vergonha. Era só o que sentia.

Finalmente, entrou. Pediu um catálogo para procurar o número de um chaveiro e um telefone (naquela época não havia celulares). Ligou e em seguida sentou-se em um banquinho de madeira na área de serviço do apartamento de seu vizinho enquanto aguardava a chegada do chaveiro. Notou que havia um radinho de pilha ligado na cozinha do apartamento ao lado transmitindo o fatídico jogo e ali da área ele conseguiu ouvir perfeitamente que o jogo estava zero a zero no último minuto dos acréscimos. Pelo menos uma notícia boa. O empate dava o título ao seu time. Mas ........