Em um certo ponto da minha vida acadêmica eu aprendi com Murray Shafer que depois da invenção do motor elétrico a sonosfera do planeta jamais seria a mesma. E o pior é que era verdade. O silêncio não é mais uma opção do indivíduo. A todo o instante há o um ruído de algum motor pairando no ar. Mesmo nos mais recônditos e isolados desertos e mares do planeta, sem ar condicionado, geladeira, automóveis e etc, você está sujeito a ouvir um jato passar sobre sua cabeça a milhares de metros. Isso é o que tinha de ser. Isso é a civilização.
De uns tempos pra cá, morando num prédio do Guará I, em Brasília, descobri algo mais infernal e perturbador do que o barulho de um motor a jato: cachorros. Muitos cachorros. Não cachorros nas ruas, sem dono. Esses, pouco se vê por aqui. Cachorros com donos. Cachorros nas casas, cachorros nos apartamentos. Casas com cinco, quatro, seis cachorros. Geralmente cachorros pequenos, tipo bassets, poodles, chihuahuas e outros do tamanho da consciência comunitária de seus donos que, não se contentando com a perturbação constante e diária que provocam na vizinhança, saem com seus animais para passear às cinco, seis horas da manhã, muitos deles sem coleira. Animais que seguem latindo no ouvido daqueles que trabalham até mais tarde e não têm muito tempo para pensar nas carências afetivas que provavelmente levam essas pessoas a chamarem seus cachorros de “filhinhos da mamãe, bebezinhos da mamãe”, como já ouvi. É inacreditável que um cidadão tenha seu horário de acordar definido pelos “filhinhos da mamãe”.
Pior que tudo isso é pensar que, ao invés de procurarmos compensar a quantidade de ruído necessária que a civilização já exige (nem sempre) estamos gerando mais ruídos, ruídos desnecessários, contribuindo para o stress da comunidade. Na mesma fonte onde aprendi sobre o barulho e o motor aprendi que aproximadamente setenta por cento dos casos de doença mental nos Estados Unidos eram, na época, conseqüência do excesso de barulho. Quem nos garante que o barulho não é responsável em grande parte pelas ações de psicopatas que atiram em colégios e cinemas, de pessoas que matam outras a pancada por pequenos conflitos, que se embriagam e atiram seus carros contra os outros ou atropelam pessoas em pontos de ônibus. Poucos exemplos para uma sociedade tão neurótica.
Neste momento em que escrevo este desabafo, escutando Saudade do Brazil de Tom Jobim, no fone de ouvido, não consigo separar as celestiais nuances harmônicas e timbrísticas do mestre, do barulho dos cachorros dos vizinhos e dos carros de som que circulam durante todo o dia sob minha janela do segundo andar, anunciando supermercados, igrejas, pamonhas, concertos de panela, gás, sorvetes e o diabo a quatro. Seria simples se tivéssemos uma “porta” acústica que permitisse deixar do lado de fora de nossas residências os ruídos externos como o fazemos com as pessoas indesejáveis.
Acho que já passou da hora de nos preocuparmos com o ruído. E, como músico, não posso deixar de colocar no mesmo balaio uma grande parte da porcaria musical que se ouve hoje. Mas essas porcarias, pelo menos, eu tenho o direito de ouvi-las ou não.
Em muitos outros países há organizações voltadas para essa discussão que praticam atos de proteção à sociedade e lutam por leis contra o barulho desnecessário, excessivo e generalizado. Precisamos criar uma cruzada contra o ruído desnecessário, um Silence Peace brasileiro, ou corremos o risco de nos matar a todos por excesso de barulho. Seria cômico se não fosse trágico.
Agora que o vinil do Tom acabou e os cachorros continuam latindo, vou colocar no “cd player” o universal disco Sarkis de minha amiga Cláudia Cimbleris, fechar minha “porta acústica”, e agradecer por ter a chance de transmutar meu stress em êxtase cósmico e de poder dizer isso tudo a vocês.
4 comentários:
Olá Marquito! Vc escreve bem! Realmente a barulheira hoje é infernal, mas vc sair atirando sem dó nos pobres cachorros da vizinhança foi demais... Hoje em dia não dá prá ouvir Tom Jobim em paz em nenhum lugar do mundo... Ou vc se isola numa concha, ou fecha sua janela por alguns instantes... Acho que vc está um pouco estressado. Mas quem não está? AH! Quanto à carência de quem tem cachorro, ela é a mesma de quem não tem, só que estes caçam com gato... Mayan e Shadeh tem mandam beijinhos..rsrsr. Saudades. Rô e Dan.
Olá Rô e Dan. Saudades de vocês. Sei que você gosta de cachorros e tem os seus, mas também sei que é uma pessoa de cabeça feita e boa vizinha, daquelas que se preocupa em não perturbar os outros. Não tenho nada contra os cachorros, inclusive, gosto dos bichinhos. Não gosto é de alguns donos deles que acham que criar um cachorro é igual a criar uma tartaruga. Quanto à janela, fica quase sempre fechada por isso mesmo, mas o resultado é quase nenhum. Beijão pra vocês e obrigado por inaugurarem o meu blog.
Oi amigo... foi uma honra inaugurar seu blog. A gente sabe que vc não tem nada de intolerante, pelo contrário, mas não resisti de dar uma puxadinha de saco pro lado dos cachorrinhos... cê me conhece...rsrsrs.
Seu blog é bem legal. Quando eu tiver alguma coisa interessante sobre música vou mandar prá vc, ok?
Sabia que vc era um ótimo compositor, mas um ótimo escritor...foi surpresa. Faz logo um livro...vc começa a escrever de um jeito que a gente não consegue parar de ler... Beijos. Rô
É isso ai professor lindo texto sobre o barulho ecessivo, e o que ele exerce de influência sobre as pessoas... Parabéns o blog ta espetacular!
Mikael Veras
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