Tudo começou na escola, da qual, em remotas épocas, não
trago muitas lembranças. Lembro sim da primeira professora particular que
visitava duas vezes por semana, depois de subir a ladeira do condomínio onde
morava em Santa Tereza, no Rio de Janeiro. Não lembro seu nome, nem seu rosto,
mas lembro da dedicação e do carinho que me dedicava quando, ainda criança,
iniciava meu trajeto acadêmico. Lembro das histórias em quadrinhos, que lia
afoitamente, nas quais, em meio a scrash’s,
punt’s e sock’s, aprendi a ler. Lembro de algumas poucas referências de
onde estudei quando criança, várias escolas, escolas públicas, uniformes,
alguns com gravata, calça de linho e sapatos pretos; provas teóricas e
trabalhos pesquisados em enciclopédias e recortes de revistas colados em folhas
de papel. Lembro dos lápis com borracha na ponta e da felicidade de comprar uma
lapiseira e uma caneta tinteiro. Lembro de saber que minha mãe, antes de se
casar, era professora. Lembro do primeiro curso de datilografia feito, alguns
anos depois, em máquinas Remington, do uso de papel carbono e corretivos de
papel. Daí para hoje o trajeto foi grande e cheio de nuances.
Lembro
com saudade do meu primeiro e remoto contato com a música quando, em Juiz de
Fora, por volta de 7 ou 8 anos de idade, ganhei um pequenino violão de
brinquedo, daqueles de plástico com cordas de nylon, de pesca. Para mim foi um
deslumbre. A inspiração vinha de uma vizinha, muitos anos mais velha, fã de
Roberto Carlos, pela qual eu nutria um certo fascínio infantil. Eu sentava na
varanda, em frente a sua casa, e “solava” as melodias do “Rei” especialmente
pra ela, na vã esperança de chamar sua atenção. Esse idílio platônico se
desenrolou até o dia em que um amigo meu, de proporções físicas avantajadas,
veio à minha casa e descuidadamente sentou-se em cima do violão, que se
encontrava no sofá. A visão do companheiro partido em dois foi a última que
tive de um instrumento, tão próximo de minhas mãos, por muito tempo.
Depois de anos estudando em escolas públicas e já morando
em Brasília ganhei uma bolsa para o colégio Marista. Estudei para Auxiliar de
Análises Químicas, ao nível de, como era chamada na época, Formação Especial.
Já nesse momento pude perceber a pouca relação existente entre esse tipo de
formação e o mercado de trabalho pois, ao terminar o chamado segundo grau, não
me achava apto de forma nenhuma a exercer a profissão para a qual me “prepararam”.
Era uma formação de cunho obrigatório mas não satisfatório até porque as opções
de escolha eram reduzidas. Além do mais,
trava-se de um colégio para uma classe da qual eu não fazia parte e que
priorizava a continuidade dos estudos, visando o vestibular e não o trabalho. Não
havia interação entre minhas expectativas e a realidade da formação técnica
nesse nível. Como muitos jovens de hoje, queria e precisava trabalhar.
Havia conseguido, aos catorze anos de idade, uma vaga no
Banco do Brasil, para onde ia todos os dias, inicialmente, de uniforme azul,
decidido a fazer desse emprego uma ponte para minha formação profissional. Redescobri
o violão, que comprei com meu primeiro salário, e a música, que se tornou,
tempos depois, referência profissional e objetivo de vida. Fiz o vestibular
para Engenharia Civil na UnB. Queria ser engenheiro, construir casas. Não
passei. No segundo, já não tão decidido assim pelas plantas e esquadros, tentei o curso de Engenharia
Elétrica na primeira opção e Psicologia na segunda. Passei, na segunda opção.
Queria então estudar e entender as pessoas. Queria entender a mim mesmo. Nesse
momento, apesar de não ter a consciência conceitual do termo, já exercia, até
certo ponto, o papel de sujeito da minha educação pois não me limitava às salas
de aula ou aos textos obrigatórios, nos quais buscava, o mais rápido possível,
as referências bibliográficas, onde descobri autores e obras que me atraíram e
fizeram parte importante do meu crescimento intelectual. Minha curiosidade
acadêmica sempre foi além dos livros exigidos para as provas.
Nunca quis ficar no Banco mas ali dentro comecei a perceber
a realidade a minha volta. Descobri, durante dezessete anos no emprego, as
pessoas, as relações profissionais, as estratégias administrativas, o sistema
capitalista e suas dicotomias. Descobri outras cidades, nas quais morei em
função da facilidade que tinha de solicitar transferências. Descobri que não
queria mais esse emprego.
Deixei a Psicologia após aproximadamente três anos de
estudo e, pouco tempo depois, o Banco. Aos trancos e barrancos me envolvi com a
música. Estudei sozinho, com apoio de alguns professores particulares até me
decidir a novamente fazer o vestibular. Tocava em bares, casas noturnas e festinhas.
Fazia trilhas para peças de teatro e ensaiava alguns passos no que viria a ser,
definitivamente, minha trajetória profissional: comecei a dar aulas
particulares de violão.
Na universidade, estudando música e, com a cabeça já
formada e mais atento à realidade à minha volta, enxerguei algumas deficiências
do curso de licenciatura, que priorizava os conhecimentos específicos em
detrimento das matérias de cunho pedagógico. Descobri como era difícil qualquer
mudança. Queria mudar pois minha opção pela licenciatura baseava-se na vontade
de fazer parte do processo social, na intenção de contribuir para a melhoria da
sociedade. Queria vincular meu pensamento ao meu sentimento. Queria usar a
música para me tornar educador. Música com a qual já convivia há muitos anos e
através da qual, compondo canções em sua maioria “engajadas”, tentava dizer alguma coisa útil e
pensava que o mundo queria ouvir. Ilusão! Ninguém queria ouvir nada daquilo.
Aliás, descobri logo que a arte não deve, obrigatoriamente, dizer nada.
Expressar e vivenciar a própria liberdade criativa deve ser seu maior objetivo.
Não foi fácil concluir o curso pois, sem emprego fixo,
tinha que me virar tocando na noite e atuando em empregos temporários que me
permitiam apenas sobreviver, com a ajuda de meus pais, ainda vivos nessa época,
e que foram um suporte de tamanho inigualável a esse percurso. Em alguns
momentos tive que trancar o curso ou algumas matérias devido à dificuldade de
conciliá-lo com a necessidade do trabalho. Em outros, pensei em desistir.
Concluí
o curso em 1999 e, já com quarenta anos, fiz o concurso para o GDF e comecei a
dar aulas na Escola de Música de Brasília, onde estou até hoje. Aos poucos fui aliando
o trabalho musical com o trabalho pedagógico. Novamente encontrei dentro de mim
a possibilidade de fazer a diferença, de contribuir. Através desse investimento
pessoal comecei a organizar reflexões sobre as práticas cotidianas na vida e no
trabalho. Comecei a observar de forma mais acurada toda a resistência a
mudanças que contagia o pensamento geral. Acreditando que a formação,
principalmente do educador, dever ser continuada e interdisciplinar, fiz cursos
de pequena duração sobre criação e produção musical e pedagógica, enquanto, paralelamente, saciava minha
curiosidade geral através dos livros. Em 2004 gravei meu primeiro cd. Em 2012,
o segundo. Em 2014, fiz meu primeiro videoclipe.
Hoje,
aqui estou, cada vez mais descobrindo possibilidades, itinerários e novas
expectativas. Carrego em mim o potencial virótico de contaminar cabeças e de
diversificar minhas práticas de ensinar e aprender. Contente por sentir a minha
volta o mesmo espírito de luta e de busca por mudanças, acreditando, cada vez
mais, no poder da organização do trabalho coletivo, ansioso pelos próximos
passos e aberto a novas idéias e à aceitação de meus erros, acertos e
desacertos, procurando crescer e melhorar em prol do desenvolvimento pessoal e
social. QUERO MAIS !!!!!
Marcos Bassul
Brasília (DF) - 2008