quarta-feira, 27 de julho de 2011

Texto recebido do meu parceirinho Marcos Apolinário Santana


O OUTRO LADO DA COISA
 
(MAS)
A palavra "coisa" é um bombril do idioma. Tem mil e uma utilidades. É aquele tipo de termo-muleta ao qual a gente recorre sempre que nos faltam palavras para exprimir uma idéia. Coisas do português.
A natureza das coisas: gramaticalmente, "coisa" pode sersubstantivo, adjetivo, advérbio. Também pode ser verbo: o Houaissregistra a forma "coisificar". E no Nordeste há "coisar": "Ô, seu
coisinha, você já coisou aquela coisa que eu mandei você coisar?".
Coisar, em Portugal, equivale ao ato sexual, lembra JosuéMachado. Já as "coisas" nordestinas são sinônimas dos órgãosgenitais, registra o Aurélio. "E deixava-se possuir pelo amante, quelhe beijava os pés, as coisas, os seios" (Riacho Doce, José Lins doRego). Na Paraíba e em Pernambuco, "coisa" também é cigarro de
maconha.
Em Olinda, o bloco carnavalesco Segura a Coisa tem umbaseado como símbolo em seu estandarte. Alceu Valença canta: "Seguraa coisa com muito cuidado / Que eu chego já." E, como em Olindasempre há bloco mirim equivalente ao de gente grande, há também o
Segura a Coisinha.
Na literatura, a "coisa" é coisa antiga. Antiga, masmodernista: Oswald de Andrade escreveu a crônica O Coisa em 1943. ACoisa é título de romance de Stephen King. Simone de Beauvoirescreveu A Força das Coisas, e Michel Foucault, As Palavras e as
Coisas.
Em Minas Gerais, todas as coisas são chamadas de trem.Menos o trem, que lá é chamado de "a coisa". A mãe está com afilha na estação, o trem se aproxima e ela diz: "Minha filha, pega
os trem que lá vem a coisa!".
Devido lugar: "Olha que coisa mais linda, mais cheiade graça (...)". A garota de Ipanema era coisa de fechar o Rio deJaneiro. "Mas se ela voltar, se ela voltar / Que coisa linda / Que
coisa louca." Coisas de Jobim e de Vinicius, que sabiam das coisas.
Sampa também tem dessas coisas (coisa de louco!),seja quando canta "Alguma coisa acontece no meu coração", de CaetanoVeloso, ou quando vê o Show de Calouros, do Silvio Santos (que é
coisa nossa).
Coisa não tem sexo: pode ser masculino ou feminino.Coisa-ruim é o capeta. Coisa boa é a Juliana Paes. Nunca vi coisa
assim!
Coisa de cinema! A Coisa virou nome de filme deHollywood, que tinha o seu Coisa no recente Quarteto Fantástico.Extraído dos quadrinhos, na TV o personagem ganhou também desenhoanimado, nos anos 70. E no programa Casseta e Planeta, Urgente!,
Marcelo Madureira faz o personagem "Coisinha de Jesus".
Coisa também não tem tamanho. Na boca dosexagerados, "coisa nenhuma" vira "coisíssima". Mas a "coisa" temhistória na MPB. No II Festival da Música Popular Brasileira, em1966, estava na letra das duas vencedoras: Disparada, de GeraldoVandré ("Prepare seu coração / Pras coisas que eu vou contar"), e ABanda, de Chico Buarque ("Pra  ver a banda passar / Cantando coisasde amor"), que acabou de ser relançada num dos CDs triplos docompositor, que a Som Livre remasterizou.         Naquele anodo festival, no entanto, a coisa tava preta (ou melhor, verde-oliva).E a turma da Jovem Guarda não tava
nem aí com as coisas: "Coisa linda / Coisa que eu adoro".
Cheio das coisas. As mesmas coisas, Coisa bonita,Coisas do coração, Coisas que não se esquece, Diga-me coisasbonitas, Tem coisas que a gente não tira do coração. Todas essascoisas são títulos de canções interpretadas por Roberto Carlos, o"rei" das coisas. Como ele, uma geração da MPB era preocupada com as
coisas.
Para Maria Bethânia, o diminutivo de coisa é umaquestão de quantidade (afinal, "são tantas coisinhas miúdas"). Jápara Beth Carvalho, é de carinho e intensidade ("ô coisinha tãobonitinha do pai"). Todas as Coisas e Eu é título de CD de Gal."Esse papo já tá qualquer coisa...Já qualquer  coisa doida dentromexe." Essa coisa doida é uma citação da música Qualquer Coisa, de
Caetano, que canta também: "Alguma coisa está fora da ordem."
 
No futebol há coisas e "coisas". A mais famosa coisa é a alcunha do Sport Recife, que é chamado pelos torcedores do Náutico e do Santa Cruz como "a coisa", pois, dizem, é uma religião formada por fanáticos devotos, que praticam algo parecido com o futebol, mas que se mistura com macumba e credos diversos. Os torcedores da "coisa" aplaudem até jogadas erradas e gols perdidos, pois se recusam a rogar praga no time deles. Enfim, uma "coisa".  
Por essas e por outras, é preciso colocar cada coisa no devido lugar. Uma coisa de cada vez, é claro, pois uma coisa é uma coisa; outra coisa é outra coisa. E tal coisa, e coisa e tal.O cheio de coisas é o indivíduo chato, pleno de não-me-toques. O cheio das coisas, por sua vez, é o sujeito estribado. Gente fina é outra coisa. Para o pobre, a coisa está sempre feia: o
salário-mínimo não dá pra coisa nenhuma.
A coisa pública não funciona no Brasil. Desde os tempos de Cabral. Político quando está na oposição é uma coisa, mas, quando assume o poder, a coisa muda de figura. Quando se elege, o eleitor pensa: "Agora a coisa vai." Coisa nenhuma! A coisa fica na mesma. Uma coisa é falar; outra é fazer. Coisa feia! O eleitor já está cheio dessas coisas!
Coisa à  toa. Se você aceita qualquer coisa, logo se torna um coisa qualquer, um coisa-à-toa. Numa crítica feroz a esse estado de coisas, no poema Eu, Etiqueta, Drummond radicaliza:
"Meu nome novo é coisa. Eu sou a coisa, coisamente." E, no verso do poeta, "coisa" vira "cousa".
Se as pessoas foram feitas para ser amadas e as coisas, para ser usadas, por que então nós amamos tanto as coisas e usamos tanto as pessoas? Bote uma coisa na cabeça: as melhores coisas da vida não são coisas. Há coisas que o dinheiro não compra: paz,
saúde, alegria e outras cositas más.
Mas, "deixemos de coisa, cuidemos da vida, senão chega a morte ou coisa parecida", cantarola Fagner em Canteiros, baseado no poema Marcha, de Cecília Meireles, uma coisa linda. Por
isso, faça a coisa certa e não esqueça o grande mandamento: "amarás a Deus sobre todas as coisas". 
ENTENDEU O ESPÍRITO DA COISA?